Havia
o tempo em que os negros eram livres. Então surgiu a escravidão. Depois veio a
liberdade. Mas aí brotou o preconceito. Surgiu, assim, um tempo em que
discriminar as pessoas por causa da cor da pele era socialmente aceito e, aos
olhos da Justiça, apenas uma contravenção penal. Para tentar pôr um fim a isso,
há exatos 33 anos, surgiu a Lei de nº 7.716, que define os crimes de racismo.
Assinada em 5 de
janeiro de 1989, pelo então presidente da República, José Sarney, a lei passou
a ser conhecida pelo nome de seu autor, o ex-deputado Caó. Carlos Alberto Caó
de Oliveira era jornalista, advogado e militante do movimento negro. Nascido em
Salvador, mudou-se para o Rio de Janeiro, estado pelo qual, em 1982, elegeu-se
deputado federal. Como constituinte, Caó regulamentou o trecho da Constituição
Federal que torna o racismo inafiançável e imprescritível. Morreu em fevereiro
de 2018, aos 76 anos.
A Lei Caó define a punição
para “os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor,
etnia, religião ou procedência nacional”. Entre esses crimes, estão impedir o
acesso de uma pessoa devidamente habilitada a um cargo público ou negar emprego
na iniciativa privada, que podem render penas de dois a cinco anos de reclusão.
Também são tipificadas como crimes ações como
impedir inscrição de aluno em estabelecimento de ensino, recusar hospedagem em
hotel ou similar, recusar atendimento em bares ou restaurantes e até recusar
atendimento em barbearias. Atitudes tão impensáveis que parecem ter ficado no
século passado, certo? Infelizmente, não. Em 2017, o Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios (MPDFT) reuniu no livro Acusações de racismo na
capital da República estatísticas dos crimes raciais no DF. Entre 2010 e 2016,
o número de denúncias subiu 1.190%, chegando a 129. Destas, sete foram de
racismo e as outras 122 de injúria racial.
Conforme definição apresentada pelo MPDFT, o
crime de racismo é caracterizado por uma conduta discriminatória dirigida a um
determinado grupo ou coletividade. Este é o crime definido pela Lei Caó. Ele
não depende de representação da vítima, podendo a denúncia ser feita pelo
Ministério Público.
Já a injúria racial é a ofensa à honra de uma
pessoa, usando, para isso, elementos como a raça, cor, etnia, religião. Nesse
caso, a vítima precisa entrar com representação.
Embora celebrem a criação da
lei, especialistas ressaltam que ela demorou a ser criada. “Demorou a haver o
entendimento de que era necessário um dispositivo legal para coibir essas
práticas. O Brasil deixou de ser escravocrata há 133 anos e a lei está
completando 33. Ou seja, há uma lacuna de 100 anos”, avalia a professora de
educação básica e autora do projeto “Mulheres Inspiradoras”, Gina Vieira. “O
ganho mais importante dela é o pedagógico. Existe o mito da democracia racial,
de que nós não somos um país racista, de que o racismo é velado. Para os
negros, ele nunca foi velado, porque acontece diuturnamente. A lei mostrou que
o Brasil é, sim, um país racista e precisa de ações efetivas para lidar com
isso”, acrescenta.
“Evidentemente, a
lei serve como instrumento para que possamos refletir sobre isso. Mas é uma lei
que tem só 30 anos. O Brasil viveu 350 anos de escravidão e ela só veio 100
anos depois da abolição. Ela não conseguiu impedir [o racismo]. Ainda tivemos
diversos registros envolvendo discriminação”, reforça o juiz Fábio Esteves,
presidente da Associação dos Magistrados do DF (Amagis-DF) e um dos organizadores
do Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros, evento que já teve duas
edições.
Mais mudanças
Após a Lei Caó, o Brasil teve
outras legislações importantes na luta para combater a discriminação racial.
Entre elas, o Estatuto da Igualdade Racial, lei sancionada em julho de 2010
pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e cujo objetivo é “garantir à
população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos
direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e
às demais formas de intolerância étnica”.
Outra mudança na
legislação — essa mais polêmica — foi a criação das cotas raciais. Sancionada
em agosto de 2012 pela ex-presidente Dilma Rousseff — para regular uma prática
que já era adotada em algumas instituições, como a Universidade de Brasília
(UnB), que foi pioneira na adoção das cotas raciais —, a lei reserva uma
quantidade de vagas em universidades federais para negros e indígenas,
proporcional ao número de negros e indígenas na unidade da Federação em que a
instituição está instalada. Desde a sua criação, porém, as cotas raciais vêm
sendo criticadas por alguns grupos. Entre os críticos está o, agora, presidente
da República, Jair Bolsonaro.
Atualmente,
diversos projetos de lei relacionados ao racismo estão em tramitação no
Congresso Nacional. No Senado, um deles quer incluir a motivação por racismo
como agravante para os crimes previstos no Código Penal. Já na Câmara, há
propostas para coibir o racismo em eventos esportivos, para igualar a injúria racial
ao racismo, para tipificar o racismo cometido na internet e até para
transformar o racismo em crime hediondo.
Mais do que as
mudanças na lei, os especialistas defendem, sobretudo, uma mudança na educação.
“Ainda é necessário avançar na função pedagógica para enfrentar o racismo nas
suas mais diversas dimensões: o racismo ideológico, o racismo institucional, a
forma como a sociedade é estruturada”, elenca Esteves.
“A estratégia mais
efetiva [para combater o racismo] é a educação. O Brasil é um país profundamente
racista e que nunca teve uma ação efetiva de reparação. Por anos, houve um
esforço sistemático para embranquecer a população. Acreditava-se que a razão do
atraso era a presença de pessoas negras. Além disso, tentam apagar o nosso
passado escravocrata. Sabe-se muito pouco do que foi a escravidão. Se as
pessoas conhecessem a nossa história, dificilmente insistiriam nesse mito de
democracia racial. E, para além da educação na escola, é preciso pensar na
educação da sociedade como um todo. Se os agentes de polícia, por exemplo,
conhecessem essa história, eles repensariam suas abordagens”, pontua Vieira,
que ainda acrescenta haver uma necessidade de estimular as denúncias de casos
de racismo: “As pessoas falam que os negros reclamam muito. Mas de cada 10, 20
situações racistas que eles vivem, denunciam uma”.
Autor: Fernando Jordão
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